Política

APIB denuncia Bolsonaro, em Haia, por genocídio indígena

Pela primeira vez na história, povos indígenas vão diretamente ao tribunal de Haia, com seus advogados indígenas, para lutar pelos seus direitos.

Brasília, 9 de agosto de 2021 – A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou, nesta segunda-feira (9), um comunicado no Tribunal Penal Internacional (TPI) para denunciar o governo Bolsonaro por Genocídio. Na data que marca o dia Internacional dos Povos Indígenas, a organização solicita que a procuradoria do tribunal de Haia examine os crimes praticados contra os povos indígenas pelo presidente Jair Bolsonaro, desde o início do seu mandato, janeiro de 2019, com atenção ao período da pandemia da Covid-19. 

Com base nos precedentes do TPI, a Apib demanda uma investigação por crimes contra a humanidade (art. 7. b, h. k Estatuto de Roma – extermínio, perseguição e outros atos desumanos) e genocídio (art. 6. B e c do Estatuto de Roma – causar severos danos físicos e mentais e deliberadamente infligir condições com vistas à destruição dos povos indígenas). Pela primeira vez na história, povos indígenas vão diretamente ao TPI, com seus advogados indígenas, para se defenderem desses crimes.

O acervo do comunicado protocolado é composto por denúncias de lideranças e organizações indígenas, documentos oficiais, pesquisas acadêmicas e notas técnicas, que comprovam o planejamento e a execução de uma política anti-indígena explícita, sistemática e intencional encabeçada por Bolsonaro.

“Acreditamos que estão em curso no Brasil atos que se configuram como crimes contra a humanidade, genocídio e ecocídio. Dada a incapacidade do atual sistema de justiça no Brasil de investigar, processar e julgar essas condutas, denunciamos esses atos junto à comunidade internacional, mobilizando o Tribunal Penal Internacional”, destaca Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib.

De acordo com trecho do comunicado, “o desmantelamento das estruturas públicas de proteção socioambiental e aos povos indígenas desencadeou invasões nas Terras Indígenas, desmatamento e incêndios nos biomas brasileiros, aumento do garimpo e da mineração nos territórios.” 

Para a Apib os ataques aos territórios  e aos povos indígenas foram incentivados por Bolsonaro em muitos momentos ao longo de sua gestão. Os fatos que evidenciam o projeto anti-indígena do Governo Federal, vão desde a explícita recusa em demarcar novas terras, até projetos de lei, decretos e portarias que tentam legalizar as atividades invasoras, estimulando os conflitos. 

“A Apib permanecerá em luta pelo direito dos povos indígenas de existirem em sua diversidade. Somos povos originários e não nos renderemos ao extermínio”, enfatiza Eloy que é um dos oito advogados indígenas que assinam o comunicado. 

O documento de denúncia, enviado ao TPI, também contou com o apoio do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e da Comissão Arns, que protocolaram, em 2019, outro comunicado à Procuradoria do TPI contra Bolsonaro, que ainda está sob análise no tribunal. 

Agosto Indígena

“Lutamos todos os dias há centenas de anos para garantirmos a nossa existência e hoje a nossa luta por direitos é global. As soluções para este mundo doente vêm dos povos indígenas e jamais nos calaremos diante das violências que estamos sofrendo. Enviamos esse comunicado ao Tribunal Penal Internacional porque não podemos deixar de denunciar essa política anti-indígena de Bolsonaro. Ele precisa pagar por toda violência e destruição que está cometendo”, afirma a coordenadora executiva da Apib, Sonia Guajajara. 

Segundo a coordenadora, o mês de agosto será marcado por mobilizações dos povos indígenas na luta por direitos. Ela ressalta o acampamento ‘Luta pela Vida’ que está marcado para acontecer entre os dias 22 e 28 de agosto, em Brasília. “Vamos ocupar mais uma vez os gramados da esplanada para impedir os retrocessos contra os direitos dos nossos povos”, reforça Sonia. 

“Alertamos o Tribunal Penal Internacional para a escalada autoritária em curso no

Brasil. O ambiente democrático está em risco”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib lembrando dos projetos de lei que estão na pauta de votação do Congresso e ameaçam os direitos indígena e do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o Marco Temporal, que pode definir o futuro dos povos indígenas. 

“Estamos fazendo um chamado de mobilização para Brasília, em plena pandemia, porque hoje a agenda anti-indígena do Governo Federal representa uma ameaça mais letal que o vírus da Covid-19. A vida dos povos indígenas está ligada aos territórios e nossas vidas estão ameaçadas. Estaremos mobilizados nas aldeias, nas cidades, em Brasília e no tribunal de Haia para responsabilizar Bolsonaro e lutar pelos nossos direitos”, destaca Tuxá. 

“Os povos indígenas permanecerão vigilantes, como historicamente fizeram. É dever do governo federal brasileiro respeitá-los, como expressão fundacional de um Estado Constitucional de Direito”, aponta trecho do documento encaminhado para o TPI.  

DESTAQUES 

  • Em 19 de novembro de 2019, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e Comissão Arns apresentam comunicado por incitação ao genocídio e crimes contra a humanidade perpetrado por Jair Bolsonaro contra povos indígenas.
  • Durante o segundo semestre de 2020, a Apib e a Clínica de Litigância Estratégica em Direitos Humanos da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, fizeram oficinas com advogados indígenas, lideranças, estudantes, especialistas e parceiros da Apib sobre a jurisdição do TPI.
  • Logo em seguida, a APIB lançou um chamado para que as lideranças e organizações de base enviassem denúncias de violações de direitos, especialmente no contexto da pandemia. Tais relatos foram em grande medida incorporados no comunicado ao TPI.  
  • Os encontros abordaram temas como a jurisdição penal internacional e suas críticas, os crimes do Estatuto de Roma, o processo perante o TPI, o papel das vítimas na construção dos casos, a admissibilidade e a agenda da Procuradoria.
  • Em dezembro de 2020, a Procuradoria do TPI informou ao Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e Comissão Arns que está formalmente avaliando a comunicação enviada em novembro de 2019.
  • Durante o primeiro semestre de 2021, a partir dos debates das oficinas feitas em 2020, a APIB iniciou um processo de coleta de depoimentos e dados sobre o impacto dos atos de Jair Bolsonaro em distintas comunidades indígenas no país. 
  • Os relatos, emitidos diretamente pelos povos indígenas afetados, documentos oficiais, pesquisas acadêmicas e notas técnicas compõem o acervo probatório do comunicado feito pela Apib, protocolado dia 9 de agosto no TPI com o apoio do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e da Comissão Arns.
  • São 86 páginas apenas com fatos, que se organizam em: 
  • Uma cronologia dos atos do Presidente Jair Bolsonaro de ataque aos povos indígenas e destruição da infraestrutura pública de garantia dos direitos indígenas e socioambientais, na qual foram compilados os principais atos administrativos, normativos, discursos, reuniões e projetos, direta ou indiretamente praticados pelo presidente Jair Bolsonaro;
  • A descrição das principais consequências da destruição da infraestrutura pública de garantia dos direitos indígenas e socioambientais: a invasão e o esbulho de terras indígenas; o desmatamento; o garimpo e a mineração em nos territórios e o impacto da pandemia da Covid-19 sobre os povos indígenas, trazendo pesquisas, relatórios e dados.
  • O relato sobre o impacto das invasões, do desmatamento, garimpo e mineração em Terras Indígenas e a propagação da pandemia de Covid-19 tiveram sobre os povos indígenas isolados ou de contato recente e sobre os povos Munduruku, os indígenas que vivem na TI Yanomami, os Guarani-Mbya, Kaingang, os Guarani-Kaiowá, os Tikuna, Kokama, os Guajajara e os Terena. 
  • A APIB leva à jurisdição penal internacional a voz e a interpretação dos povos indígenas sobre os crimes dos quais vêm sendo vítimas, fato por si só histórico. Com base nos precedentes do TPI, a APIB abriu investigação por crimes contra a humanidade (art. 7. b, h. k Estatuto de Roma – extermínio, perseguição e outros atos desumanos) e genocídio (art. 6. B e c do Estatuto de Roma – causar severos danos físicos e mentais e deliberadamente infligir condições com vistas à destruição dos povos indígenas).

Perguntas e Respostas

P: Várias ações apresentadas na denúncia já aconteciam antes do Governo Bolsonaro (desmatamento e incêndios nos biomas brasileiros, garimpo e mineração em terras indígenas têm sido historicamente comuns, com maior ou menor intensidade, em outros governos.). Por que essa denúncia só agora?R: É secular a violação aos direitos dos povos indígenas, bem como os riscos de desmatamento e exploração da Amazônia. Mas é inédita a construção de uma política anti-indígena, sistemática e intencional. É a primeira vez que se vê a desconstrução da infraestrutura de proteção dos direitos indígenas e dos direitos socioambientais. A Funai, por exemplo, de órgão de garantia dos direitos indígenas, se transformou em órgão de perseguição. Também é a primeira vez que se vê um presidente se posicionar contrariamente à demarcação de terras indígenas e o incentivo da atuação ilegal de garimpeiros e grileiros.  Associado à política anti-nindígena, há um discurso discriminatório e violento contra os povos indígenas que surte efeitos concretos. Não se tratam apenas de discursos, mas de ações concretas e concatenadas, todas indicadas na comunicação.
P: Por que o TPI deve discutir este caso?R: Sabemos que é um desafio para o Tribunal Penal Internacional lidar com fatos que envolvam países com algum grau de democracia. Historicamente, o Tribunal tem voltado suas atenções para situações de conflitos deflagrados. Mas o que os povos indígenas mostram ao TPI é que é possível o cometimento dos crimes mais graves em ambiente de desdemocratização, como o brasileiro. Sob o comando do Presidente Jair Bolsonaro foi instituída uma política anti-indígena sistemática a intencional que pde ser tecnicamente enquadrada como genocídio e como crimes contra a humanidade contra povos indígenas e tradicionais do país. É essencial, portanto, que o Tribunal Penal Internacional fique ciente dos relatos específicos desses impactos sobre os povos isolados e de recente contato, sobre os Munduruku, sobre os Yanomami, os Guarani-Mbya e Kaigang, os Guarani-Kaiowá, os Tikuna, os Guajajara e os Terena. Com a apresentação da situação geral do país e dos relatos específicos desses povos é que se espera é que os crimes cessem e que a comunidade internacional possa ficar atenta às violações que ainda estão em curso no país e que podem tomar proporções ainda mais graves caso não haja medidas efetivas.
P: Por que a escolha de levar o caso a uma corte internacional?R: O sistema de justiça brasileiro não tem sido capaz de oferecer respostas, mais especificamente a responsabilização do presidente da República pela sua política anti-indígena. Nenhum destes atos gravíssimos que são apresentados na comunicação sequer foi objeto de investigação ou abertura de investigação formal contra o Presidente Jair Bolsonaro. Para o Tribunal Penal Internacional, é preciso demonstrar que não haja uma efetiva investigação ou que não se espere independência e imparcialidade de investigadores e juízes. O Presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado nenhum apreço à independência das instituições, como ficou comprovado pelas sucessivas interferências na Polícia Federal, a forma como controla a Procuradoria Geral da República, com a nomeação de um procurador totalmente alinhado com suas com suas ideias inconstitucionais, e as investidas contra o Supremo Tribunal Federal. 
P: Tendo em vista a morosidade do TPI diante de casos de grande relevância, quais impactos concretos vocês esperam a partir da denúncia?R: Há uma responsabilidade da APIB, como associação representativa dos povos indígenas brasileiros, de acionar todos os mecanismos disponíveis para prevenir, reparar ou responsabilizar o genocídio dos povos tradicionais e as demais violações de direitos humanos que estamos sofrendo. Essa comunicação, em conjunto com as que já foram apresentadas, reforça o alerta ao sistema internacional de que o que estamos passando no Brasil é intolerável. Nosso principal objetivo é demonstrar à Procuradoria do Tribunal Penal Internacional a gravidade do que está acontecendo no Brasil em relação aos povos indígenas, tradicionais e ao meio ambiente, apresentando relatos específicos da gravíssima situação vivida por alguns povos (Munduruku, Yanomami, Guarani-Mbya e Kaigang, Guarani-Kaiowá, Tikuna, Guajajara e Terena).  
P: Não seria um exagero falar em genocídio?R: Não. O crime de genocídio exige um ato típico com a intenção especial de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal, seja por ofensas graves à integridade física e mental (artigo 6.b) ou pela sujeição intencional a condições de vida com vista a provocar sua destruição total ou parcial (artigo 6.c). A existência de uma política anti-indígena sistemática e intencionalmente promovida pelo Presidente Jair Bolsonaro causa severos danos físicos e mentais e procura sujeitar os povos indígenas a condições tais que podem gerar sua destruição, seja pela desassistência de saúde, insegurança alimentar, contaminação por Covid ou por metais em razão da expansão do garimpo ilegal e da invasão de terras. As consequências dessa política anti-indígena estão especificamente descritas para os povos isolados e de recente contato, para os Munduruku, os Yanomami, os Guarani-Mbya e Kaigang, os Guarani-Kaiowá, os Tikuna, os Guajajara e os Terena.
P: Que tentativas foram promovidas previamente pelos autores da denúncia junto ao sistema de justiça do Brasil?R: Os povos indígenas atuam diretamente em diversas instâncias, mas a ação penal contra o Presidente da República é de competência privativa do Procurador-Geral da República.




P: Por que a comunicação menciona ecocídio, que não é um tipo previsto no Estatuto de Roma?R: Ecocídio já é interpretado pela Procuradoria do TPI como uma forma por meio da qual se pode dar o cometimento de crimes contra a humanidade e genocídio, ou seja, a destruição do meio ambiente e dos recursos naturais como forma de atacar sistematicamente um grupo. Há, de fato, o debate sobre a sua tipificação. A comunicação da APIB pode colaborar para ambos os casos: avançar na interpretação já dada pela Procuradoria do TPI e estimular o debate internacional sobre uma possível tipificação.A menção ao ecocídio é feita para apontar que os ataques ao meio-ambiente, às matas, às águas, às florestas, ferem de morte a humanidade. Ainda que não haja um tipo penal que o defina no ordenamento jurídico do TPI, o debate decolonial que o apresenta no mundo da vida é urgente. E ele servirá de pano de fundo para comprovar a gravidade do que está acontecendo no Brasil em relação aos crimes tipificados e cometidos contra os povos indígenas (genocídio e crimes contra a humanidade).
P: Por que nenhum ministro (do Meio Ambiente, por exemplo) foi incluído?R: Porque quem manda e é responsável pelas ordens cumpridas pelo Ministro do Meio Ambiente e outros órgãos do governo federal é o Presidente Jair Bolsonaro, mentor da política anti-indígena em curso no Brasil.
P: Como foi a construção deste Comunicado?R: O Comunicado apresentado pela APIB foi construído coletivamente, desde o início. Uma peça judicial com essa complexidade demanda a convergência de profissionais diversos para que fosse elaborada.No início do segundo semestre de 2020, representantes da APIB e do Coletivo Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e da Comissão Arns (que apresentaram uma denúncia em novembro de 2019 ao TPI, e que segue em avaliação) estiveram em contato com o objetivo de tratar do Comunicado autônomo que a APIB desejava construir.A partir disso, definiu-se uma metodologia para que os advogados e advogadas indígenas pudessem aprender sobre o funcionamento da jurisdição do TPI, os crimes ali previstos, os requisitos de uma denúncia etc.. A APIB convocou lideranças indígenas e organizações parceiras para participar de uma agenda de formação sobre o tema. As oficinas foram realizadas em parceria com a Clínica de Litigância Estratégica da FGV/SP, e contou com vários especialistas sobre temas distintos afetos ao TPI.A partir dessas oficinas, construiu-se um roteiro e houve a formação de grupo de profissionais da APIB, do CADHu, da Comissão Arns e consultores de organizações parceiras para a elaboração da minuta do Comunicado. Esse grupo analisou fontes documentais, normativas, jornalísticas, bem como colheu depoimentos testemunhais para a elaboração da peça. A construção coletiva desse Comunicado durou um período de aproximadamente um ano.

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